quarta-feira, 17 de abril de 2024

poemas recuperados 20

 


Henri Matisse (1869-1954), “iI faisoit chaut, et le somme coulant…” Litografia 26 x 15,5 cm. Plate 28. Florilège des Amours de Pierre Ronsard (1524-1585), Albert Skira Paris 1948. (pág.28).


bebendo do teu corpo a nascente

“E por vezes por vezes ah por vezes

num segundo se evolam tantos anos.”   David Mourão-Ferreira *

 

Com as mãos sempre compondo

fluidas gotas frescas perfumadas

vestindo o teu corpo em redondo

de jangadas e ondas encantadas.


Jardim perfeito sem flores alheias

que brota suave do afã nas terras

espraiando no encanto das ideias

o indizível muro onde te encerras.

 

Por vezes eu te queria verão feliz

queimando com gestos de um dia

bebendo do teu corpo a nascente.

 

Era tempo em que só o desejo diz

onde e como uma paixão se inicia

erótica luta de um abraço ardente.

 

*David Mourão-Ferreira (1927-1996). “E por vezes” in “Matura idade” (1966-1972). Arcádia, Lisboa, 1973

segunda-feira, 15 de abril de 2024

poemas recuperados 19

 

Hannah Höch (1889-1978). Coupé au couteau de cuisine – Dada à travers la dernière époque culturelle allemande de la bière de Weimar. 1919. Técnica mista 114 × 90 cm. Nationalgalerie, Staatliche Museen, Berlin.

máquinas de comunicação

 “Pour le journaliste, tout ce qui est probable est vrai.” Honoré de Balzac*

 

Mil metrónomos e manómetros em batráquio matraquear

hiperbólicas máquinas carapaças malévolas nos ouvidos

tique taques e teclados de mecânicos restolhos a triturar

proféticos palimpsestos ressoando nos ecléticos perigos.

 

Aracnídeas ideias misantrópicas tecendo veladas intrigas

impiedosa e retocada maquinação na vida transformando

brotando as perdidas mentiras entre as peças prometidas

salteadores de onomatopeias pelas palavras comichando.

                                                    

Traquejos e metralhas ribombam problemáticas tentativas 

acutilantes vapores que emitem profundos ásperos danos

reciprocas rodas à dentada se vão mordendo porque vivas.

 

Os ebúrneos trituradores perversos, vigorosos, meteóricos

em paradigmáticos colóquios e luxúria das leis harmónicas

criam hediondos periódicos frutos de narrativas metafóricas.

 

 *Honoré de Balzac (1799-1850). Monographie de la Presse Parisienne par M. H. de Balzac  Axiome Bureau Central des Publications Nouvelles. Paris 1842. (pág.78). BnF.

 

 


domingo, 14 de abril de 2024

poemas recuperados 18

 

Francois Chauveau(1613-1676). L'aigle et le hibou. Illustration de Fables de Jean de La Fontaine (1621-95). Edition de 1728. 

exilado em existir

Le soleil plaît à l’aigle et blesse les hiboux. Abée Le Monnier *

 

No volúvel vaivém que toda a vida tem

em fortes gritos ou quando só murmura,

um risonho futuro me adivinhou alguém

em vibrantes tons de glória e formosura.

           

Entusiasmo que tombou em indiferença

mudando a viva vida em tempo perdido

estando ausente em qualquer presença

olhando o futuro como passado repetido.

 

Quis planar ao sol como águia triunfante

em altos voos os mais ousados atrevidos

na vã vertigem de dominar todo o espaço.

 

Mas como coruja que só em voo atrofiante

rasando por lugares sombrios escondidos,

exilado em existir vivo o dia passo-a-passo.

 

*Inscrição atribuída a abée (Guillaume Antoine) Le Monnier (1723-1797), no pedestal do busto de Denis Diderot (1713-1784) de Jean-Antoine Houdon (1741-1828) de 1773.

A inscrição completa: “Il eut de grands amis et de petits jaloux;/ Le soleil plaît à l'aigle et blesse les hiboux.” [Ele teve grandes amigos e pequenos invejosos/ o sol agrada à águia e magoa as corujas]

segunda-feira, 8 de abril de 2024

poemas recuperados 17

 


Henri-Edmond Cross (Henri-Edmond-Joseph Delacroix) (1856-1910). La plage de saint-Clair 1896 óleo s/tela 54,5 x 65,4 cm. Museu Barberini Postdam Alemanha.

Je cherche l’or du temps

“…Je cherche l'or du temps, et tu ne comprends pas

Je cherche l'or du temps, et la beauté des choses…”

Charles Dumont *


Passar horas quebradas de ternura

nessa praia mão-cheia de rochedos

flutua nas areias um tempo de ouro

colhendo ávidos sopros nos cabelos

 

Essa árvore como mastro abanado

por um vento de carinho trabalhado

 

No vazio silêncio só de luz e sombra

em tarde sábia perfeita e de ventura

respirar em baços traços escondidos

precoce recordar a instável aventura

 

Tudo enfim que nos ajude a encantar

deliciosos ares que mareiam no lugar

 

Lugar que sempre n’alma permanece

guardando funda marca reconhecida

os riscos que qualquer um escolherá

memória em que sabemos fazer vida

 

História é só cinza e sonho passado

pegada dum corpo em sofá cansado.

 

*Charles Dumont (n.1929). Canção Je cherche l’or du temps do LP Pathé 1975 França.


sábado, 6 de abril de 2024

poemas recuperados 16

 




Gustave Doré (1832-1883), les Océanides, 1860/69. Óleo s/tela 127 x 185,5 cm. Col. particular.

destino perdido

“Solo un sussurro

che è la voce del mare fatta ricordo” Cesare Pavese *

 

Saber que o bom o melhor o excelente

sempre se gasta e morre ou apodrece

saber que o raro a maravilha o sublime

rapidamente como fumo se desvanece

 

Dilacerado por tanta inquieta desilusão

aos gritos que no mar provocam ondas

cintila no corpo essa satânica vibração

como luz que se esvai criando sombras

 

Aquelas ninfas que nos foram negando

as brandas águas e brisas passageiras

nesse escondido rochedo desaparecido

 

como a cristalina filigrana que entoando

os sedutores cantos as sensuais sereias

foram presságios do meu destino perdido.

 

* “Só um sussurro / Que é a voz do mar feita saudade”

Cesare Pavese (1908-1950). Mattino in Lavorare stanca, 1936. in  Poesie di Cesare Pavese. Arnoldo Mondadori1966 (pág. 41).

 


segunda-feira, 1 de abril de 2024

poemas recuperados 15


Gaspar David Friedrich (1774-1840), caminhante sobre um mar de névoa c.1817. Óleo s/tela 98 x74 cm. Hamburger Kunsthalle.


preso ao peso da idade

De onde vem a vagabunda, profunda e podre tristeza

que floresce em mim e não cresce em mais ninguém?

A doentia dúvida que me destrói, a estranha incerteza,

que não se sabe porquê, como se forma e d’onde vem.

 

Será da infância onde não havia ainda tantos enganos?

havia melhor tempo, havia outro espaço, havia mais luz.

Tempos sem amarguras que não estavam envenenados

aos quais o desejo a vontade de voltar ainda me conduz?

 

Onde se diluiu o descuidado entusiasmo com que traçava

lúcido futuro naquele amplo acontecer - com que energia?

Porque sinto agora este cansaço preso ao peso da idade?

 

Perdidas estão aquelas lutas solidárias em que acreditava

poder criar com entusiasmo e alegria tudo o que perseguia,


com essa ávida vontade de me ir construindo em liberdade!

terça-feira, 26 de março de 2024

poemas recuperados 14

 


Paul Klee (1879-1940). New harmony 1936. Óleo s/tela 93,7 x 66,4 cm. Solomon R. Guggenheim Museum, New York.

só com sol e sombra

 Ao querer que o planeta azul fique mais verde

somar ao verde a luz do sol criando castanho

a cor da terra e dos esguios troncos da floresta

para se recriar os justos equilíbrios de antanho.

 

Ouvir a voz na água, nos bosques e nos prados

beber a névoa que se esparsa de tanta maneira

pisar arcanos e crespos caminhos empedrados

praias de água terra e espuma unidas pela areia.

 

Tudo o que nasce, cresce, morre e por fim acaba.

se move, flui, voa, corre, sopra, nunca mais torna

correm rios, voam nuvens, toda a floresta suspira.

 

Molhada é a terra ao caírem frias gotas de geada

se tudo se vai, nada se perde, tudo se transforma

só com o cantar do sol toda a terra por fim respira.

terça-feira, 19 de março de 2024

poemas recuperados 13

 



Imagem não identificada possivelmente de Abraham Bosse (1604-1676)?


De seguro apenas cada escolha que errei

 “Cubramos, ó silenciosa, com um lençol de linho fino o perfil hirto da nossa Imperfeição.” Fernando Pessoa*

 

Nesse estendido lençol de cheiro a terra

estremece como sonho aéreo inatingível

água madrinha em areais de cor dourada

nasce ardente ardor fogo febril inevitável

 

Os cantares crispados das ocultas feridas

de presentes ao sol e à murta indiferentes

como barco ébrio e aventuras não vividas

desgovernado pelos longes transparentes

 

As mãos afanosas com sensual brandura

nesse amor passageiro de encanto breve

sempre a escorrer as vindimas da ternura

 

Sinuosos quelhos por onde sempre andei

tornando tão esparso o que neles percorri

de seguro apenas cada escolha que errei.

 

*Fernando Pessoa, Floresta do Alheamento in Obra Poética, Companhia Aguilar Editora, Rio de Janeiro 1965. (pág.439).

 


sábado, 9 de março de 2024

poemas recuperados 12

 

René Magritte (1898-1967), Les merveilles de la Nature 1953. Óleo s/tela 77,5 x 98,1cm. Museum of Contemporary Art Chicago USA.

mar onde mergulhar é coisa incerta

Sobre uma pintura de Magritte

 

Na praia de airoso vento e suave mar

um rochedo sem retrato ou identidade

que pintou compondo como escultura

perfeita no gesto que o é de liberdade

 

Trabalhados nessa tão verdenta rocha

os amantes se dizem pedra enlaçados

como num desviado inverso de sereias

nessa paixão em peixes transformados

 

Ao fundo no tempo azul a nave avança

tétrico espectro qual navio de ninguém

sequer um vulto mareando na coberta

 

Nesse extenso areal que o azul amansa

não se sabe em que ondas se banharam

nesse mar onde mergulhar é coisa incerta.


terça-feira, 5 de março de 2024

poemas recuperados 11

 

Fernand Léger (1881-1955). Le réveille-matin 1914óleo s/tela 100 x 81 cm. Centre Pompidou. Musée national d'art moderne Paris,

Leve e suave sopra em mim

 

De forma leve suave sopra em mim

silenciosa melodia que nem escuto

são restos dos sons quase sem cor   

tiquetaques lambendo o tempo curto.

 

Imagino-me a despertar em flagelo,

névoa nascente de modo repentino,

difícil acordar de perplexo pesadelo

tropel de ideias em delírio peregrino.

 

Espio-me em vulto astuto na cidade,

fiapos de suaves árias em sol maior

crescendo na constante fútil vontade

 

de ir compondo pelo espaço aberto,

descartado o sonho quiçá reparador,

matinal melodia, quando eu desperto. 


segunda-feira, 26 de fevereiro de 2024

poemas recuperados 11

 

René Magritte (1898-1967) La reproduction interdite, 1937. Óleo s/tela 79 × 65 cm. musée Boijmans Van Beuningen Roterdão.

Nota -O livro pousado na prateleira “Aventures d’Arthur Gordon Pym” é de Edgar Poe (1809-1849), na tradução de Charles Baudelaire (1821-1867). Michel Levy Frères Libraires – Éditeurs Paris 1858.

aquele que já sou e que serei não sendo

 Sed fugit interea fugit irreparabile tempus” Virgílio*

 

No mar amargo e vento incerto onde navego

reaparecem receios que ficaram escondidos

tempo curto para que se mudem as certezas

lugar onde moram tantos medos clandestinos.

 

O enigma da tarde que aparece nos espelhos

imagens da verdadeira verdade ou da fingida

com sonhos enevoados e pesados pesadelos

que se mais duram menos tempo são na vida.

 

Estas rudes mãos que apenas um nada tendo

com que se traçam vários círculos imperfeitos

que no mar se criam e se esfumam pelo vento.

 

Nunca pareça e não pereça que o modo lento

de receitar escondidos remédios sem defeitos

para aquele que já sou e que serei não sendo.

 

*“Mas entretanto o irreparavel tempo / Nos vae fugindo”

Publius Vergilius Maro ( 70 -19 a.C.) As Georgicas de Virgilio. Traduzidas do original em verso endegasyllabo com anotações exclusivamente agronómicas e zootechnicas por João Felix Pereira. Agronomo, medico, emgenheiro civìl e professor jubilado do Lyceo Nacional de Lisboa.Typographia Universal Lisboa 1875 (vs. 283 pág. 53).


 

segunda-feira, 19 de fevereiro de 2024

poemas recuperados 10

 



Thomas Eakins (1844-1916) Sailing c.1875. óleo s/tela 81 x 117,5 cm. Philadelphia Museum of Art.


o mar é da liberdade o grito mais fecundo

Homme libre, toujours tu chériras la mer!  Charles Baudelaire *

 

Aparelhar o barco, a mão firme no leme

medir o sol, caçar a vela, asa levantada.

Pelo vento azul na luz pálida que treme

partir com a vela grande toda enfunada.

 

Ir mapeando mares, mareando tempos.

Onda saltando à proa a talhar as águas,

inefável paz desses seguros momentos,

ao zarpar e esquecer todas as mágoas.

 

Saber se o sol encobre a dourada maré

ao virar de bordo sem receio nem medo

qual vento venta vagueando pelo mundo.

 

Que horizonte ousar para sem o alcançar

revelar o mais escondido do seu segredo:

o mar é da liberdade o grito mais fecundo.

 

*Charles Baudelaire (1821-1867), L’Homme et la mer XIV in Les Fleurs du Mal 2ª ed. Poulet-Malassis et de Broise Éditeurs, Paris 1861. (pág.35 e 36).

quarta-feira, 14 de fevereiro de 2024

poemas recuperados 9

 


Adolfo Bellocq (1899-1972). El demagogo, 1925. Zincografia. 23 x 26 cm. Museu de Artes Plásticas Eduardo Sívori. Museu de arte de Buenos Aires.

longe é tempo incerto. Perto está a ânsia de mandar

“- Ó glória de mandar, ó vã cobiça

Desta vaidade a quem chamamos fama!” Camões *

 

Para aí andam muitos com barbas bem crescidas

fazendo restolhos de promessas juízos e opiniões

discursos parecendo limpos, eruditos, eloquentes,

filigranas de palavras escorreitas e belas citações.

 

Mas se são tão elaborados, eficazes e insinuantes  

falta-lhes a modesta verdade grave e a pertinência,

já que falam muito, pouco dizem, nada convencem

e não se conseguem afirmar na sua independência.

 

Ainda assim há quem procure alcançar no imediato,

no teatro do mundo um papel tão desejado e imune,

um poder mesmo que modesto, pequeno, particular.

 

Para o que tudo vale, seja a intriga ou o vicioso pacto

não prevendo nem o longo e médio, só o tempo curto.

Longe é tempo incerto. Perto está a ânsia de mandar.

 


*Luís de Camões (1524-1580), Os Lusíadas Canto III est. CXV. Lello & Irmão Editores Porto 1970. (pág. 1236).